Entenda o que pode acontecer com o cinema brasileiro no governo Bolsonaro

Nesta sexta-feira (9), a Ilustrada publicou uma extensa reportagem sobre quais seriam as consequências da revogação da Lei Rouanet. A extinção do mecanismo, principal instrumento federal de incentivo às artes, causaria um verdadeiro apagão na cultura do país.

O presidente eleito tem apoio de setores da direita que apoiam o fim desse tipo de incentivo.

O setor audiovisual, que não depende da Rouanet para a produção de longas-metragens, também debate, com certa apreensão, o que pode ser o futuro da atividade com a futura gestão Bolsonaro. No Festival do Rio, que vai até o próximo domingo, não faltaram discursos de cineastas clamando pela continuidade das políticas de incentivo.

Isso porque, dentre todas as áreas da cultura, essa é a que conseguiu se estruturar de forma mais perene, regida em torno de várias leis e de uma agência reguladora (a Ancine) e, portanto, mais imune aos humores dos diferentes dos governos. Isso não significa, contudo, que o setor não tema o futuro governo.

“A grande preocupação é a censura, direta ou indireta”, na opinião de Francisco C. Martins, vice-presidente da Apaci (Associação Paulista de Cineastas). “Movimentos que o apoiaram, como o MBL, tentaram impedir certos eventos [como a exposição ‘Queermuseu’]. É de se perguntar se o governo dele será autoritário ou respeitará a Constituição.”

O presidente eleito não fez grandes menções à indústria do audiovisual durante sua campanha. Quando abordou o tema da cultura, afirmou que a Lei Rouanet precisava ser revista. O mecanismo de renúncia fiscal, contudo, não se aplica ao grosso da produção de obras para o cinema e para a televisão, exceto quanto a curtas-metragens.

Séries e longas-metragens se ancoram na Lei do Audiovisual, que não foi citada por Bolsonaro. Ainda assim, alterações na Rouanet poderiam provocar reflexos indiretos no setor. É que festivais como a Mostra de Cinema de São Paulo, por exemplo, fazem uso dela.

A edição deste ano, por exemplo, que terminou há uma semana, foi autorizada a captar cerca de R$ 6 milhões pela Rouanet –acabou captando um total de R$ 840 mil, ou praticamente um quarto de todo o orçamento do evento, que exibiu mais de 300 filmes na cidade. Alterações na lei provocariam uma mudança imediata no tamanho do festival.

Para provocar mudanças na forma como os filmes brasileiros são feitos, o novo presidente teria que mexer na independência Ancine, a Agência Nacional do Cinema.

“Ele não falou sobre o assunto. Mas se a atividade audiovisual for parar dentro da pasta da Educação e ela for ocupada por um militar, podemos cair num tipo de produção direcionada, temática”, diz Vera Zaverucha, ex-diretora da agência.

O setor do audiovisual se insurgiria contra mudanças na autonomia da Ancine, segundo Marcos Alberto Bitelli, advogado especializado na área audiovisual. “Ela é um órgão de Estado, e não de governo”, diz

Ele afirma que o modelo de fomento e regulação da atividade no Brasil segue padrões que existem há mais de 40 anos no país. Criada em 2001, por Fernando Henrique Cardoso, a Ancine cumpre funções que já foram de instituições como a Embrafilme e o Concine, que existiram em décadas anteriores.

“Passou por vários governos. FHC copiou, o PT ampliou. Não vejo como uma gestão vá destruir algo que está funcionando desde o tempo do regime militar”, diz Bitelli. “O patamar jurídico só seria mudado se o Congresso Nacional quisesse muito, mas não vejo parlamentares que sejam contra a proteção da cultura brasileira, valor que transcende a ideologia.”

Segundo o advogado, na comparação com outras despesas do governo, “o valor envolvido nesses fomentos não é tão significativo a ponto de o Estado cogitar mexer na área”.

Seu argumento abre espaço para se falar dos resultados positivos do audiovisual como indústria –movida por leis de incentivo e aquecida pela demanda dos canais a cabo, obrigados por lei promulgada durante o governo Dilma a exibir conteúdo nacional independente na grade.

Nos quatro primeiros anos de vigência da chamada Lei da TV Paga, mais do que quadruplicou o número de produções brasileiras na televisão fechada, o que ajudou a indústria do audiovisual a passar relativamente incólume à crise econômica que afetou os outros setores da economia brasileira a partir de meados da década.

O que fomenta o setor são recursos provenientes do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), abastecido com dinheiro arrecadado a partir da Condecine, uma contribuição exigida de quem distribui conteúdo audiovisual, incluindo aí empresas de telecomunicação e operadoras de televisão por assinatura.

Em 2017, esse fundo destinou cerca de R$ 748,7 milhões à atividade que, no Brasil, repousa quase que inteiramente nesses recursos públicos.

Para mexer no FSA, Bolsonaro teria de mudar os integrantes do comitê gestor do fundo, segundo Vera Zaverucha, ex-diretora da Ancine.

“Ainda assim, esses novos membros não poderiam dirigir os recursos para uma área que não fosse a do cinema e da TV, sob o risco de suas atitudes serem contestadas judicialmente por entidades como as empresas de telecomunicação, que pagam a Condecine”, diz.

O que o governo pode é mudar o percentual de contingenciamento desses recursos, isto é, impedir que certa proporção desse dinheiro seja executada. Atualmente, pouco mais da metade dos recursos do FSA já são contingenciados.

Membro do comitê gestor do FSA, o cineasta André Klotzel crê que existe um “pânico irracional”. “Não há motivos para que se tomem os discursos eleitorais de Bolsonaro como práticas de governo”, diz.

“Tem-se a impressão de que a esquerda é quem controla o cinema nacional. Mas quando se olha os campeões de bilheteria nacional, o que se vê são filmes como ‘Nada a Perder’ [sobre o bispo Edir Macedo] e comédias que têm uma visão mercadológica que não tem nada de esquerdista.”