Filmes do Festival do Rio propõem reflexão sobre Brasil pós-eleições
Curiosa a sensação de se estar numa mostra nacional de cinema, como o Festival do Rio, poucos dias após uma eleição tão emblemática como a que terminou indicando Jair Bolsonaro para o Planalto. Fica impossível não traçar paralelos entre o país que se vê nas telas e o que se anuncia.
Dois dos primeiros títulos exibidos na seção Première Brasil, no último fim de semana, propõem essa reflexão, ainda que por vias distintas.
“A Terra Negra dos Kawa”, com o qual o diretor amazonense Sérgio Andrade, tenta o prêmio Redentor, segue a senda da utopia mística. Já “Sueño Florianópolis”, da argentina Ana Katz, o faz com um apelo à nostalgia.
No primeiro caso, tem-se a história de uma aldeia indígena na periferia de Manaus em que um grupo desgarrado da etnia tukano cultiva um solo escuro de propriedades quase–quem dele degusta entra numa espécie de transe. Para os índios, aquela terra tem também um efeito terapêutico e um significado ritual, tem a ver com o contato com seus antepassados.
Ao longo da trama, um grupo de cientistas e certo funcionário de um Instituto de Terras ficam curiosíssimos sobre aquela porção de solo, o que, claro, dá vazão a interpretações sobre a atual ameaça que recai sobre os povos nativos do país diante das recentes declarações de Bolsonaro.
Ao apresentar o filme, diretor e elenco fizeram questão de frisar o tema da demarcação dos territórios indígenas.
Mas o longa de Andrade não se resume ao apelo social. Também propõe, na tela, uma espécie de idílio autóctone. Apresenta um universo em que índios, brancos e negros comungam no mesmo pedaço de chão, mas unidos segundo rituais dos primeiros. Uma leitura de um Brasil utópico, cada vez mais apartado do retrato que se desenha.
Da Argentina vem “Sueño Florianópolis” que, embora tenha por intuito despertar mais nostalgia do outro lado da fronteira, de uma época em que os habitantes do país vinho atulhavam as estradas brasileiras, acaba funcionando como ode à integração entre as duas grandes nações sul-americanas. Mas sendo lançado num momento delicado para o Mercosul.
A história, ambientada nos anos 1990 de câmbio bom para os Hermanos, acompanha uma família portenha que viaja de carro para passar as férias de verão na capital catarinense. Os filhos são adolescentes no desabrochar de sua sexualidade; os pais, separados, querem dar uma chance para ver se retomam o casamento.
É com o pé na areia que aquela família, capitaneada por um casal de psicanalistas (pudera, são argentinos!), aos poucos se entrega à languidez brasileira e a esta gente que bebe cerveja e anda de sunga o dia inteiro. A viagem terá impacto em cada um.
A diretora Ana Katz resiste à tentação de cair nas manjadas piadinhas sobre a rivalidade Brasil-Argentina. Claro que uma ou outra menção a Maradona e Pelé estão lá, mas a interpretação que a cineasta faz sobre a psique dos dois países é mais aprofundada do que isso.
Como saldo, fica um gosto levemente amargo. Com a virada do século, e os infortúnios econômicos por que até hoje passam, os argentinos minguaram e se tornaram peças mais raras nas praias daqui. Mas mais do que isso, “Sueño Florianópolis” desperta alguma melancolia por anunciar uma união –uma complementação de temperamentos, mais precisamente—que hoje está mais do que ameaçada.