Personagens de ‘Dogman’ tentam ser machos, e não homens, diz ator do filme

O filme “Dogman”, de Mattoe Garrone, concorreu à Palma de Ouro em Cannes e agora desembarca no Brasil como o principal destaque da  8 ½ Festa do Cinema Italiano. O evento, que começa nesta quinta (2), exibe  um panorama da produção contemporânea do país europeu.

Na trama, Marcello (Marcello Fonte) é um sujeito franzino e de voz esganiçada que ganha a vida dando banho em cachorros numa periferia barra-pesada do sul da Itália.

Por ali também ronda Simone (Edoardo Pesce), troglodita que tem arroubos de violência na mesma proporção com que anseia por mais porções de cocaína. Os pequenos comerciantes locais vivem em pé de guerra com o brutamontes, mas o protagonista não está disposto a ajudar a conter o arruaceiro —até porque o limpador de cães tira bons trocados vendendo droga a ele.

Edoardo Pesce, à esq., enforca Marcello Fonte em cena de ‘Dogman’, de Matteo Garrone (Créditos: Divulgação)

É simbólico que seja esse o título mais vistoso entre os 11 filmes da mostra. Para parte da crítica, o embate central de “Dogman” reverbera a ascensão da extrema direita, em marcha hoje na Itália.

Edoardo Pesce, contudo, discorda dessa interpretação. “Politicamente, ‘Dogman’ não me parece estar nem à direita e nem à esquerda”, afirma o ator romano, que está no Brasil para promover esse e outro filme que também está na programação, “Fortunata”, de Sergio Castellitto.

Leia a entrevista com o ator.

 

*

Seu personagem é, dentre todos os humanos do filme, aquele que mais se assemelha a um cão. Pode falar um pouco sobre a composição corporal desse personagem?
Essa pode ser uma boa metáfora porque ele se assemelha de fato a um cão. A parte animalesca é muito forte em Simone. Mas para mim ele se parece muito com um tubarão. Até mesmo com o de “Tubarão”, de Spielberg. Está sempre se movimentando em volta da cidade, percorrendo as ruas com sua moto. Ele é um pouco um predador, que também tem sua inocência. Não tem tanta maldade, mas tem a força física.

Trabalhei muito com Matteo a questão do físico do Simone. Foram dois meses de preparo, fiz dieta… Ainda que não se veja porque estava a sempre vestido no filme, eu estava muito musculoso, uma vez que era preciso que houvesse uma presença física forte. Para criar o Simone, aliás, partimos do trabalho físico, que é o contrário do que em geral se faz, já que se parte em geral da psicologia do personagem. Nos ajudou a chegar mais facilmente à psique dele. E a gente decidiu nos ensaios que, como um cão, quanto menos ele falasse mais imprevisível e mais assustador seria.

Ele é alguém que tem uma visão do futuro daqui a dez minutos. É alguém que age pelos instintos imediatos.

Matteo Garrone é um diretor conhecido por mostrar a crueza da vida, sem qualquer tipo de glamour. Na sua opinião, o que torna o trabalho dele tão único, particular?
Matteo tem um estilo de dirigir muito realista, cru, muito econômico. Mas, por outro lado, eu vejo muito a parte onírica de seus filmes. Mesmo “Dogman”, ainda que seja muito real, é também uma fábula. Se a nossa interpretação é muito realista e há a violência, eu o vejo como um quadro de Hopper [Edward, pintor americano], em que tudo está muito em suspensão, sem espaço e tempo. Há uma convivência entre o sonho e a realidade em seu cinema.

“Dogman” é também um filme sobre masculinidades e sobre homens que se sentem pressionados a provar sua masculinidade. Como encara esse tema?
Sinto que os personagens  tentam ser machos, mas não homens. Não há um pensamento racional sobre a masculinidade. Simone tenta bancar o durão, mas no fundo é um menino que quer um carinho. Marcello [Marcello Fonte] tem fascínio pela masculinidade que faz mal e não pela que os faz se tornarem homens. Ser homem é outra coisa.

Em Cannes, críticos que viram o filme notaram que ele serve como metáfora da atual ascensão da extrema direita na Itália. De que maneira acha que o filme trata dessa questão?
Não concordo porque não era o que Matteo pretendia com o filme. Ele fez um quadro em movimento e nós, os atores, somos uma cor neste quadro. Portanto, ele me escolheu porque eu, como ator, posso dar a minha cor característica a essa pintura. Politicamente, “Dogman” não me parece estar nem à direita e nem à esquerda.

De toda forma, sobre a política italiana neste momento, diria que é preciso um pouco de controle, não sobre a imigração, mas sobre o trabalho, sobre as multinacionais que fazem o que querem, sobre problemas muito maiores que, de toda forma, devem ser tutelados pela política.

A questão da imigração envolve outro fato sobre o qual as pessoas não falam. O verdadeiro problema é que se se permite que as grandes empresas paguem às pessoas dois, três euros por hora de trabalho, e não garantem direitos trabalhistas. As pessoas se deprimem, não encontram trabalho e veem como inimigos as pessoas em dificuldade. Se a gente estivesse um pouco melhor não haveria problema. Haveria menos tensão.

Mas como encara o fato de o filme “Dogman” estar sendo lançado no atual momento da política italiana?
Não há nenhuma ligação entre o filme e a política atual italiana. O filme foi lançado em maio porque Matteo queria ir para Cannes. E ele decidiu filmar “Dogman” porque estava em um intervalo entre trabalhos. Era um período em que ele não poderia estar filmando “Pinocchio” porque os atores com quem ele vai filmar estavam ocupados com outros trabalhos. E ele recuperou esse roteiro que havia escrito há 12 anos.

É uma ideia que nasceu de um dos contos de um livro chamado “Fattacci – Il racconto di quattro delitti italiani” [de Vincenzo Cerami], que conta quatro histórias de crimes reais. Uma delas é sobre o “Canaro” [sobre o assassinato do ex-boxeador amador Giancarlo Ricci, ocorrido em 1988], uma história que fala da relação psicológica de masoquismo e dependência, de sadismo também. E Matteo a transformou em “Dogman”. Ele se interessa não pelos crimes, mas sim pelo fator psicológico destes crimes. Ele parte destas histórias para depois universalizá-las. Parte de fatos cotidianos e as transforma em fábulas.

*

A Festa do Cinema Italiano exibe 11 filmes, entre eles “Uma Questão Pessoal”, drama sobre um soldado atormentado e último filme de Vittorio Taviani, cineasta morto em 2017. Do veterano Gianni Amelio, traz o melodrama “A Ternura”, centrado na figura de um advogado que vê sua afeição aflorar por uma família de vizinhos.

8 ½ Festa do Cinema Italiano
Qui. (2/8) a qui. (8), em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Recife, Curitiba, Porto Alegre, Florianópolis, Vitória, Belém e Goiânia. Para a programação completa, acesse o site