Rótulo de pós-terror colado em ‘Hereditário’ escancara preconceito
“Obra-prima”, “filme mais aterrorizante da década”, “da lavra de ‘O Exorcista’”. Quem lê as hipérboles com as quais a crítica especializada vem se referindo ao longa “Hereditário” tem a impressão de estar diante de um daqueles momentos em que a história do cinema se desenrola diante dos olhos.
De fato, a produção dirigida pelo estreante Ari Aster, nova-iorquino de 31 anos, já figura na lista dos dez melhores títulos de 2018, segundo o Metacritic, site que compila
resenhas cinematográficas.
Inegáveis méritos à parte, a obra surfa numa maré de boa vontade com a qual a imprensa hoje tem recebido certos filmes de terror e que vem a reboque do êxito de “A Bruxa”, “O Babadook”, “Ao Cair da Noite” e, sobretudo, “Corra!”.
O jornal britânico The Guardian cunhou até um termo para se referir a e eles: pós-terror, como se para diferenciá-los das manjadíssimas fitas de zumbis, bonecas possuídas e fantasmas de videoteipe.
A expressão abarca filmes que abrem mão do susto fácil e propõem indagações políticas e sociais. O próprio John Krasinski, diretor de “Um Lugar Silencioso”, disse que sua obra foi influenciada pelo que chama de “terror elevado”.
O que isso mostra, de fato, é que o gênero como um todo ainda é alvo de preconceito estético; e que o novo rótulo vem como um salvo-conduto.
Reportagem deste mês da BBC mostra como roteiristas ingleses chegaram a apresentar seus projetos sob a denominação de “thrillers de calafrios” para driblar produtores indispostos a tocar filmes de terror. Historicamente, o gênero é associado a filmes baratos e de pretensões comerciais, logo, de prestígio zero.
O verniz pós-terror virou estratégia de marketing. Permite, por exemplo, que o A24, elogiado estúdio indie que tocou “Moonlight”, aceite patrocinar “Hereditário”. Ou que o público não torça o nariz para o Oscar de melhor roteiro original dado a “Corra!”.
Achar pérolas no meio de uma maçaroca de tripas e sangue não é coisa nova. Nem é um revival do período de ouro que vai “O Bebê de Rosemary” (1968) a “O Iluminado” (1980). Pense no ano de 1999, que entre desastres constrangedores como “Stigmata” e “A Casa Amaldiçoada” também revelou “A Bruxa de Blair” e “O Sexto Sentido”, hoje tidos como clássicos do gênero.
Mais interessante do que estabelecer castas é celebrar o fôlego que o gênero conquistou nos últimos anos, fruto da sensação de que se vive hoje um mal-estar generalizado. “Tem a ver com o mundo estar na merda”, resumiu a cineasta Juliana Rojas, ao falar à Folha sobre “As Boas Maneiras”.
O horror talvez seja a forma mais comum de veicular uma alegoria política ou social num cinema de aspirações populares. Em “Corra!”, a tônica era o racismo. Mas há espaço também para falar do fundamentalismo (“A Bruxa”), da ambiguidade da maternidade (“O Babadook”) e até do silêncio conivente da população branca americana (“Um Lugar Silencioso”).
No caso de “Hereditário”, não falta ressonância política, embora boa parte da imprensa insista em vê-lo apenas sob o prisma da insanidade mental. Há ali um potente ataque ao patriarcado, ao privilégio masculino. Mas dar mais detalhes seria entregar spoilers.