Algoz da cultura hippie, Charles Manson foi o criminoso mais célebre de Hollywood

A morte do criminoso Charles Manson, na noite deste domingo (19), deve fazer seu rosto estampar obituários nas páginas internacionais, mas não seria estranho vê-lo também nos cadernos culturais. É que poucos assassinos tiveram a mesma ressonância para o mundo das artes, particularmente para o cinema e para a música, que ele teve.

É uma importância que vai muito além do mero fato de seu nome ecoar em séries como “Mindhunter”, um dos últimos lançamentos da Netflix, ou ser citado em programas sobre psicopatas.

Manson e seus seguidores são indissociáveis da cultura hippie, que marcou a paisagem californiana em fins dos anos 1960, e os assassinatos que cometeram se deram bem no coração de Hollywood. Não é exagero dizer que o cinema mudou depois dele.

Nascido em 1934, em Cincinnati, cidade que compõe o Cinturão da Ferrugem nos Estados Unidos, Manson teve uma história de criação que faz jus ao pejorativo clichê do “white trash” (a escória branca): vinha de família pobre, era filho de uma mãe que engravidou aos 16 anos de um militar que Charles pode jamais ter conhecido, foi vítima de abusos e passou a maior parte de sua vida entre idas e vindas de reformatórios.

No fim dos anos 1950, ele fez como muitos de seus contemporâneos beatniks e se mandou para a Califórnia, na costa oeste, dirigindo um carro roubado. Ali viveria pelos próximos dez anos, entre alguns bicos e umas tantas contravenções (foi cafetão de prostitutas adolescentes, passou cheques sem fundo). Morou em Berkeley, cidade universitária ao norte do Estado e notória como epicentro da contracultura.

BEACH BOYS E GONORREIA

Em 1967 já o encontramos como líder da seita que lhe valeu fama, a “Família Manson”, vivendo em esquema comunal com seus seguidores num rancho nos arredores de Los Angeles. Era época de euforia hippie, de expansão da mente por meio de drogas, de sexo livre e de valores comunitários. Não era, portanto, estranho que um guru que apregoasse essas mesmas coisas amealhasse tantos fãs.

Dennis Wilson, baterista dos Beach Boys, topou com duas de suas discípulas pedindo carona em 1968. O músico as hospedou em sua casa, em Los Angeles, e, voltando do estúdio de gravação numa noite, encontrou Manson rondando por ali. Ele havia sido convidado pelas garotas. Fascinado pela figura, o deixou ficar, e todos moraram por alguns dias na mansão de Wilson, custando-lhe, como ele depois afirmou, US$ 100 mil e uma gonorreia persistente.

Manson compunha, e Wilson ficou tão impressionado com suas letras que prometeu apresentar-lhe o produtor Terry Melcher, dono do casarão que mais tarde seria a cena do crime. O executivo não ficou muito interessado, mas Wilson chegou a gravar algumas das canções escritas por Manson antes que os dois rompessem no mesmo ano (o Beach Boy ficou assustado com suas mudanças de temperamento).

BEATLES E SANGUE

Foi em novembro de 1968 que os Beatles lançaram o seu disco conhecido como “Álbum Branco”, e que trazia em seu lado três a canção “Helter Skelter”, composta por Paul McCartney, e uma das mais barulhentas do grupo.

A letra fala de escorregador, tobogã, de “chegar ao fundo e voltar ao topo”, e Manson a interpretou como um sinal cifrado de que uma guerra racial estava prestes a irromper, e que seus seguidores, via uma tortuosa interpretação mística, deveriam dar o primeiro passo. E isso significava ir até a mansão que ele julgava pertencer a Melcher, o produtor musical, e assassinar quem lá estivesse. “E deixem uma mensagem demoníaca ao sair”, ordenou.

(A atriz Sharon Tate, em foto sem data dos anos 1960. Créditos: Divulgação)

Na noite de 8 de agosto de 1969, Tex Watson e três mulheres (Susan Atkins, Patricia Krenwinkel e Linda Kasabian) entraram na casa de Melcher. Ele não morava mais no local, que estava alugado para o cineasta Roman Polanski, que por sua vez estava na Inglaterra filmando…

…O resto é história: os três encontraram lá a atriz Sharon Tate, grávida de oito meses de Polanski, e outros três amigos. Os quatro foram amordaçados e esfaqueados. Ao deixarem o local do crime, Susan escreveu a palavra “porco” com sangue de Tate na porta da casa.

MEDO E PARANOIA EM HOLLYWOOD

O crime teve um impacto tremendo na indústria do entretenimento americano, que na época estava enamorada da cultura hippie e estava quase toda fincada em Los Angeles.

Em seu livro “Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock N’Roll Salvou Hollywood” (ed. Intrínseca), o jornalista americano Peter Biskind escreve como “uma sensação onipresente de medo e paranoia desceu sobre a cidade como uma nuvem de smog, repleta de correntes de choque e inquietação.”

“Ninguém ficou imune. Todo mundo os conhecia [as vítimas]”. Warren Beatty cortava cabelo com o cabeleireiro Jay Sebring, uma das vítimas dos seguidores de Manson. Beatty inclusive quase chegou a alugar a mansão em que Polanski vivia.

Os crimes cessaram essa lua de mel entre Hollywood e os hippies, tidos na época como a salvação de suas bilheterias. Mas Manson entrou no cânone cultural: ele e seus seguidores foram condenados à morte (a pena mais tarde seria comutada a prisão perpétua após a Califórnia abolir a punição capital), e o julgamento deles mexeu com o imaginário americano.

É que Manson e tudo o que ele simboliza galvanizavam os grandes choques de valores na virada dos anos 1960 para os 1970: os jovens contra os velhos, os libertários contra os caretas, os rebeldes contra o sistema, e assim vai.

Os crimes rendem frutos culturais até hoje. Axl Rose costumava vestir uma camiseta com o rosto de Manson, e até gravou uma música dele, “Look at Your Game Girl”. A banda inglesa Kasabian, por exemplo, se batizou a partir do sobrenome de uma das criminosas.

Em seu próximo filme, Quentin Tarantino vai abordar o episódio. Após as acusações contra Harvey Weinstein, a Sony encampou o projeto, e a atriz Margot Robbie está escalada para o papel de Sharon Tate.

As punhaladas dos Manson fizeram bem mais do que matar Sharon Tate; degolaram o movimento hippie e apressaram o seu sumiço.