Filmes sobre violência rural, estupro e aborto esquentam Festival de Brasília
“Rifle”, longa que abriu a competição do Festival de Brasília, na noite de quarta (21), bagunça os limites entre a ficção e o documentário para contar uma história de conflitos fundiários em estâncias gaúchas.
Dione (Dione Ávila) arma-se contra ameaças que parecem perturbar a estância em que trabalha, num rincão remoto dos pampas: forasteiros, um fazendeiro que deseja ampliar suas terras e saqueadores de carne que matam seus animais à noite.
“Já tínhamos o roteiro. Mas quando fizemos a pesquisa de elenco entre o pessoal da região, reescrevemos alguns diálogos e situações”, diz o diretor Davi Pretto, que repete em “Rifle” o mesmo recurso empregado em seu longa de estreia, “Castanha” (2014).
A atmosfera de “Rifle” vai ficando mais tensa à medida que Dione vai entrando numa espiral paranoica. O filme também não deixa de embutir um olhar social sobre a vida dos estanceiros, atados à terra, morando em seus casebres simples.
O diretor conta que o longa foi filmado nas casas dos atores, todos eles egressos daquele universo.
Ao anunciarem o filme no palco, diretor e equipe trajavam camisetas com inscrições: “cinema contra o golpe”, movimento de cineastas que têm ganhado força nesta edição do festival e que tem estampado o seu logo nos créditos iniciais de vários dos filmes em exibição.
“É algo que está coando em todo o Brasil”, diz Pretto. “Todo mundo está angustiado, e a pior coisa é essa perseguição aos artistas.”
Na quarta, todos os três realizadores que apresentaram seus filmes na competição –além de Pretto, os curta-metragistas Marcus Curvello (“Ótimo Amarelo”) e Marcus Vinicius Vasconcelos (“Quando os Dias Eram Eternos”)—puxaram coros de “Fora, Temer”.
BÍBLIA, ASSÉDIO, ABORTO
Além de “Rifle”, que compete pelo Candango, o Festival de Brasília também contou com a exibição, em exibições paralelas na tarde de quarta-feira, de documentários que dialogam entre si.
“Precisamos Falar do Assédio”, da paulista Paula Sacchetta, é o mais contundente: reúne depoimentos de mulheres que foram vítimas de algum tipo de abuso.
A premissa é o que distingue o filme: a equipe da produção estacionou uma van no centro de São Paulo e do Rio e convidou todas que passavam a entrar no carro e dar o seu depoimento sobre os casos de violência que sofreram.
Dentro da van, sem a interferência de qualquer entrevistador ou da diretora, as mulheres estão sozinhas, tendo a companhia apenas da câmera ligada. Algumas preferem ocultar o rosto com uma máscara; outras mostram a cara.
O filme se constrói a partir da montagem: uma perturbadora compilação de dezenas de casos de estupro, assédio sexual e violência. Em comum entre muitos deles, o tabu do silêncio, o trauma, a impotência e o machismo à volta.
Causa ruído apenas o desejo da diretora de algumas vezes se colocar no filme, conversando com as depoentes antes ou depois de seus depoimentos, como se quisesse mostrar uma solidariedade com as entrevistadas, que é desnecessária; o filme já causa empatia por si só.
“Sexo, Pregações e Política”, de Aude Chevalier-Beaumel e Michael Gimenez, aborda a presença de lideranças neopentecostais no Congresso. Os diretores se debruçam sobre como a agenda de matriz religiosa de deputados da bancada evangélica tem barrado qualquer legislação pró-aborto ou pró-casamento gay.
Sem inovar na forma, é um filme que não esconde que lado defende: contrapõe discursos engajados de membros de movimentos homossexuais e de coletivos feministas aos argumentos teocêntricos de deputados como Marco Feliciano e João Campos e de falastrões como Jair Bolsonaro.
Ao abordar a figura do pastor Silas Malafaia, um dos maiores opositores ao aborto e aos direitos dos homossexuais, por exemplo, os diretores tratam de embutir imagens da cobrança do dízimo, inclusive por maquininhas de cartão de débito.
“Demos palavra a todo mundo. As pessoas não têm vergonha de falar o que falam”, diz a diretora Aude, nascida na França, que conta ter optado por fazer um filme que abordasse o paradoxo da liberdade sexual do Brasil: “Não precisa de mais do que dois dias para perceber que não é um país assim tão liberal”.
Ao não avançar sobre o senso-comum dos argumentos conservadores que emperram pautas liberais no Legislativo, o filme deixa aquela mesma impressão de se estar lendo um textão de rede social, daqueles escritos justamente para que seus amigos concordem. “Sexo, Pregações e Política” parece pregar para convertidos –não os convertidos à Bíblia, é claro.