Filmes sobre violência rural, estupro e aborto esquentam Festival de Brasília

GUILHERME GENESTRETI

“Rifle”, longa que abriu a competição do Festival de Brasília, na noite de quarta (21), bagunça os limites entre a ficção e o documentário para contar uma história de conflitos fundiários em estâncias gaúchas.

Dione (Dione Ávila) arma-se contra ameaças que parecem perturbar a estância em que trabalha, num rincão remoto dos pampas: forasteiros, um fazendeiro que deseja ampliar suas terras e saqueadores de carne que matam seus animais à noite.

“Já tínhamos o roteiro. Mas quando fizemos a pesquisa de elenco entre o pessoal da região, reescrevemos alguns diálogos e situações”, diz o diretor Davi Pretto, que repete em “Rifle” o mesmo recurso empregado em seu longa de estreia, “Castanha” (2014).

A atmosfera de “Rifle” vai ficando mais tensa à medida que Dione vai entrando numa espiral paranoica. O filme também não deixa de embutir um olhar social sobre a vida dos estanceiros, atados à terra, morando em seus casebres simples.

O diretor conta que o longa foi filmado nas casas dos atores, todos eles egressos daquele universo.

Ao anunciarem o filme no palco, diretor e equipe trajavam camisetas com inscrições: “cinema contra o golpe”, movimento de cineastas que têm ganhado força nesta edição do festival e que tem estampado o seu logo nos créditos iniciais de vários dos filmes em exibição.

“É algo que está coando em todo o Brasil”, diz Pretto. “Todo mundo está angustiado, e a pior coisa é essa perseguição aos artistas.”

Na quarta, todos os três realizadores que apresentaram seus filmes na competição –além de Pretto, os curta-metragistas Marcus Curvello (“Ótimo Amarelo”) e Marcus Vinicius Vasconcelos (“Quando os Dias Eram Eternos”)—puxaram coros de “Fora, Temer”.

Cena do filme "Rifle", de Davi Pretto
Cena do filme “Rifle”, de Davi Pretto

BÍBLIA, ASSÉDIO, ABORTO

Além de “Rifle”, que compete pelo Candango, o Festival de Brasília também contou com a exibição, em exibições paralelas na tarde de quarta-feira, de documentários que dialogam entre si.

“Precisamos Falar do Assédio”, da paulista Paula Sacchetta, é o mais contundente: reúne depoimentos de mulheres que foram vítimas de algum tipo de abuso.

A premissa é o que distingue o filme: a equipe da produção estacionou uma van no centro de São Paulo e do Rio e convidou todas que passavam a entrar no carro e dar o seu depoimento sobre os casos de violência que sofreram.

Dentro da van, sem a interferência de qualquer entrevistador ou da diretora, as mulheres estão sozinhas, tendo a companhia apenas da câmera ligada. Algumas preferem ocultar o rosto com uma máscara; outras mostram a cara.

O filme se constrói a partir da montagem: uma perturbadora compilação de dezenas de casos de estupro, assédio sexual e violência. Em comum entre muitos deles, o tabu do silêncio, o trauma, a impotência e o machismo à volta.

Causa ruído apenas o desejo da diretora de algumas vezes se colocar no filme, conversando com as depoentes antes ou depois de seus depoimentos, como se quisesse mostrar uma solidariedade com as entrevistadas, que é desnecessária; o filme já causa empatia por si só.

“Sexo, Pregações e Política”, de Aude Chevalier-Beaumel e Michael Gimenez, aborda a presença de lideranças neopentecostais no Congresso. Os diretores se debruçam sobre como a agenda de matriz religiosa de deputados da bancada evangélica tem barrado qualquer legislação pró-aborto ou pró-casamento gay.

Sem inovar na forma, é um filme que não esconde que lado defende: contrapõe discursos engajados de membros de movimentos homossexuais e de coletivos feministas aos argumentos teocêntricos de deputados como Marco Feliciano e João Campos e de falastrões como Jair Bolsonaro.

Ao abordar a figura do pastor Silas Malafaia, um dos maiores opositores ao aborto e aos direitos dos homossexuais, por exemplo, os diretores tratam de embutir imagens da cobrança do dízimo, inclusive por maquininhas de cartão de débito.

“Demos palavra a todo mundo. As pessoas não têm vergonha de falar o que falam”, diz a diretora Aude, nascida na França, que conta ter optado por fazer um filme que abordasse o paradoxo da liberdade sexual do Brasil: “Não precisa de mais do que dois dias para perceber que não é um país assim tão liberal”.

Ao não avançar sobre o senso-comum dos argumentos conservadores que emperram pautas liberais no Legislativo, o filme deixa aquela mesma impressão de se estar lendo um textão de rede social, daqueles escritos justamente para que seus amigos concordem. “Sexo, Pregações e Política” parece pregar para convertidos –não os convertidos à Bíblia, é claro.

O jornalista viajou a convite do Festival de Brasília