‘Vai ficar fora de controle’, diz Kleber Mendonça Filho sobre filme em Cannes

GUILHERME GENESTRETI

Após um hiato de quatro anos, o Brasil está de volta à competição do festival mais importante de cinema, o de Cannes.

“Aquarius”, novo filme do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho –incluindo os novos títulos de Pedro Almodóvar e Sean Penn– pela prestigiosa Palma de Ouro. O prêmio só foi vencido pelo país uma única vez, em 1962, com “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte.

Em 2012, o país participou da competição com “Na Estrada”, de Walter Salles. A produção, contudo, era multinacional: feita em parceria com EUA, Reino Unido, Canadá, França e Argentina, além de contar com elenco todo americano e ser falada em inglês. A última vez que o sotaque brasileiro foi ouvido na principal sessão de Cannes foi em 2008, com “Linha de Passe”, de Walter Salles e Daniela Thomas.

Mendonça Filho, que levará “Aquarius” para a Croisette, é também o diretor de “O Som ao Redor”, elogiado drama social que usa uma rua do recife para discutir os problemas sociais brasileiros. Em sua nova produção, ele volta a tratar da questão urbana na capital pernambucana tendo como trama o embate entre uma mulher vivida por Sonia Braga e a construtora que planeja comprar seu apartamento para demolir seu prédio.

Leia a seguir a entrevista com o diretor, concedida algumas horas após o anúncio dos competidores de Cannes.

Sem Legenda– Qual a importância de participar do festival de Cannes após um hiato tão grande?*
Kleber Mendonça Filho — É inegável o tamanho da janela que se abre para o filme. Eu acho que ele vai ficar fora de controle, que é a melhor coisa que pode acontecer a ele. “O Som ao Redor” estreou no Festival de Roterdã, que é bem menor do que Cannes. A partir daí, ele ficou fora de controle, o que eu acho fantástico: você passa a não dar conta dos pedidos, descobre que está passando em lugares que não faz ideia. É muita gente, muita atenção, muita mídia. Tem que segurar o tranco porque é muita exposição.

E qual o saldo desse filme?
Minha relação com esse filme é muito boa. Pode parecer estranho, mas às vezes, quando o diretor termina um filme, ele fica inseguro. Não é o caso. Estou satisfeito.

O filme já chegou a ser descrito como um drama social com elementos fantásticos. Agora, a sinopse trata de um apartamento na orla do Recife. O que mudou?
Hoje a gente divulgou pela primeira vez a sinopse e eu estou de acordo com ela. Ela está bem clara, clara como é o nome da personagem, “Clara”. Clara é uma mulher de 65, viúva. que mora no último prédio de estilo antigo na avenida Boa Viagem, que se chama Aquarius. Ela entra numa guerra fria com uma construtora, que tem outros planos para o terreno. Querem comprar o apartamento dela, demolir o Aquarius e construir um outro prédio no lugar.

Novamente a questão imobiliária, então. O tema já aparecia em “O Som ao Redor”. Por que voltar a ele?
Não consigo responder sobre como é o filme, sobre o que é o filme, como ele vai se encaixar na minha filmografia. Não sei, não seria correto como realizador. Não sei o que o filme vai ser. A trama é essa que eu te disse. Tô querendo que as pessoas vejam o filme.

É que sinopses anteriores falavam que a personagem de Sonia Braga tinha o dom de viajar no tempo, o que parece bem diferente disso.
Continuo defendendo que, sim, que estão corretas essas sinopses anteriores. É que hoje a gente tem algo mais da trama formatada, o plot. A partir daí eu travo. É isso, mas não quero dizer que isso sobre o filme

A escolha da Sonia Braga destoa das suas opções por trabalhar com atores menos conhecidos. Por que escolheu ela?
Foi numa reunião de amigos lá em casa. Pedro Sotero, acho que foi ele que sugeriu o nome dela Ele falou “Por que não a Sonia Braga?”. Eu respondi “puta que o pariu, seria incrível”. É que personagem é muito específico. É uma mulher foda. Digamos, uma pessoa muito interessante, de 65 anos. Tinha essa dúvida sobre quem seria ideal. Daí pensei: não é um filme para uma não profissional, é para uma atriz profissional. O Marcelo Caetano fez chegar o roteiro em Sonia. Ela leu e respondeu em menos de 24 horas. E aí começou o processo.

“O Som ao Redor” tinha um protagonista claro, mas o filme não se fechava nele: havia vários outros personagens. Nesse novo, o filme parece mais focado numa personagem só. Quais os desafios disso?
Dependendo do espectador, a pessoa escolhia um protagonista diferente para “O Som ao Redor”. Não era tão claro. Nesse, é bem claro. Ela está em todas as cenas, acho. O grande desafio é criar uma personagem 3D, embora o filme não seja 3D. É que durante o filme, a personagem é várias coisas. O desafio é oferecer uma personagem que é muita coisa, que precisa lhe surpreender. Sabe quando você faz amizade com alguém, ou se apaixona, e a pessoa deixa de ser interessante se ela não te surpreende mais? Então, o desafio era fazer uma personagem assim, interessante, surpreendente, perfeitamente imperfeita.

Você já chegou a falar que “Aquarius” era uma obra sobre um “arquivo vivo”. Isso parece bem claro com essa nova sinopse, que fala de transformações urbanas.
É, um arquivo pessoal que não é só físico, que é emotivo. Cada pessoa é um arquivo ambulante, cheio de experiências, transformações. Espero não estar colocando selos no filme. É um filme sobre arquivo, sobre importância do arquivo, ainda mais nesse país está dividido e que eu não imaginava que chegaria a esse nível.