Walter Salles cai na estrada com o chinês Jia Zhang-ke
Os dois diretores têm uma obra marcada pela estrada. Um deles, o chinês Jia Zhang-ke, explora os deslocamentos de seus conterrâneos, trabalhadores empurrados pela voracidade econômica do país asiático. O outro, o brasileiro Walter Salles, conta história de gente que viaja em buscas existenciais.
É no documentário “Jia Zhang-ke, um Homem de Fenyang” que os dois cineastas se encontram. No filme, que estreia nesta quinta no Brasil, Walter Salles vai até a cidade natal de seu colega chinês para explorar o drama social que embasa a carreira do diretor de “Plataforma” (2000) e “Em Busca da Vida” (2006).
“Hoje, se você quiser entender toda a extensão do drama humano e social que acontece na China, ver os filmes de Jia Zhang-ke é essencial”, diz o brasileiro, realizador de “Central do Brasil” (1998).
Nesta terça-feira (1º), a “Ilustrada” publicou uma reportagem sobre o filme. Na quarta (2), a Folha promove pré-estreia gratuita do filme seguida de debate com a participação de Salles, do crítico Inácio Araujo e a diretora da Mostra de Cinema de SP, Renata de Almeida.
Logo abaixo, a íntegra da entrevista que fiz com o diretor Walter Salles.
Folha – O que o levou a fazer um filme sobre Jia Zhangke?
Walter Salles – Por coincidência, o primeiro filme de Jia ganhou a seção Forum de Berlim no mesmo ano em que “Central do Brasil” estava no festival. Quando vi “Um Artista Batedor de Carteiras”, e depois as obras-primas que são “Plataforma” e “Em Busca da Vida”, tive a impressão de que poucos cineastas filmavam o nosso tempo como Jia Zhang-ke. Seus personagens viviam no outro lado do mundo, mas as suas angustias e desejos raramente me pareceram tão próximas. Leon Cakoff e Renata de Almeida de Almeida dividiam essa impressão, e em 2007 Jia veio pela primeira vez para a Mostra de São Paulo. Tivemos uma primeira conversa em público. Fiquei tão impressionado pelo homem quanto pela obra. A ideia de um documentário e de um livro sobre Jia Zhang-ke nasce nesse momento, na Mostra.
Por que o considera o cineasta mais importante de sua geração?
Nenhum país mudou de forma tão brutal nos últimos 20 anos quanto a China. Esse é exatamente o período que Jia Zhang-ke registrou com sua câmera, como evidenciam os dez anos cobertos por “Plataforma”. Penso que ninguém filmou os efeitos devastadores da globalização como ele. De forma tão aguda, e ao mesmo tempo, com tamanha delicadeza e afeto por seus personagens. Jia é um cronista da China contemporânea: seu passado vivendo as agruras da China comunista e as transformações econômicas dos últimos anos são temas recorrentes em seus filmes. Ao mesmo tempo, é um diretor cujos filmes são mais conhecidos fora de seu país natal do que entre os chineses.
Como cineasta, como você encara esse paradoxo da obra dele?
Jia registrou as transformações de um país que passava de uma forma de ortodoxia à outra- a do mercado. Mas o que lhe interessou não foram as mudanças macroeconômicas, e sim o impacto que elas tiveram no homem comum. A China, nos filmes de Jia, é uma terra em transe. Ao mesmo tempo em que ele filma a passagem da adolescência para a idade adulta, ele registra o esfacelamento de uma memória coletiva. É o contrário do que se vê nos filmes do principal cineasta da Quinta Geração, Zhang-Ymou, que se tornou o cineasta oficial do regime. Por isso, não é de se admirar que os três primeiros filmes de Jia Zhang-ke tenham sido proibidos na China, e só atingiram o público graças aos DVDs piratas. Ao mesmo tempo, a sua independência o torna uma voz dissonante cada vez mais importante no seu país. Para se ter uma ideia, 15 milhões de pessoas o acompanham através do Twitter chinês.
Tanto a obra dele quanto a sua são marcadas pela ideia de deslocamento, por personagens que vagam e amadurecem durante a viagem. Acha que essas semelhanças realmente conferem?
No documentário, Jia explica que seu pai sonhava em conhecer o mundo, mas não podia sair de sua pequena cidade, Fenyang. Com a mudança da matriz econômica, os trabalhadores chineses deixaram de ter um vínculo afetivo com seus locais de trabalho e regiões, e tiveram que se deslocar para encontrar emprego em obras como a da construção da descomunal barragem de Três Gargantas. Esses trabalhadores são chamados na China de “flutuantes”, e são os personagens dos filmes de Jia. Nesse sentido, não se movem porque querem, por razões existenciais, mas porque não têm alternativa. O deslocamento, nos filmes de Jia, adquire portanto uma conotação que só pertence a seus filmes. Mesmo que questões parecidas existam em “Terra Estrangeira”, não há comparação possível.
Que outros paralelos acredita que se pode fazer em relação aos filmes dele?
Um dos efeitos mais extraordinários dos filmes de Jia Zhang-ke é que eles trouxeram o cinema de volta ao centro do debate, um papel que o cinema já teve mas foi perdendo com o surgimento de outras mídias como a internet. Hoje, se você quiser entender toda a extensão do drama humano e social que acontece na China, ver os filmes de Jia Zhang-ke é essencial. No Brasil, quem oferece uma possibilidade semelhante, a do cinema como forma de desvendamento de um país em mutação, é Kleber Mendonça com seu excelente “O Som ao Redor”.
No documentário, você se deixa conduzir livremente por Jia Zhangke. Pode contar um pouco sobre essa opção para o filme?
O documentário tem um vetor que nos guiou desde o início, o de buscar as diversas camadas da memória nos filmes de Jia Zhang-ke. As memórias afetivas, as de seus amigos e familiares que irrigam os primeiros longas de Jia em Fenyang, no norte da China. E também quis voltar para os locais onde Jia havia rodado seus filmes, para ver como eles haviam mudado com o tempo. Em várias ocasiões, Jia e seus atores não conseguiam reencontrar essas locações, porque ruas ou cidades milenares haviam sido varridas do mapa. Elas continuam a existir em seus filmes, e o cinema cumpre ali uma de suas funções principais, a de registrar uma geografia física e humana que não mais será. Foi essa opção pela investigação da memória que explica, talvez, como Jia nos confiou histórias de seu pai ou de sua família que nós desconhecíamos, sem que uma pergunta minha tenha disparado a lembrança. Como o documentário partiu de uma ideia precisa, ele também pode ser realizado com liberdade.
O filme propõe um retrato sobre a China atual. Como você, que já esteve naquele país outras vezes, encara o atual momento daquele país?
Estive pela primeira vez na China logo depois da guerra com o Vietnã, em 1979. Depois montei a série documental que meu irmão João realizou sobre a China para a TV Manchete, “O Império do Centro”. Nada disso me preparou para o que vimos agora na China. O país é hoje um laboratório a céu aberto. E, em muitos casos, com consequências graves. A violência que vem a reboque da mudança de modelo. Taxas de poluição dificilmente imagináveis. A desmobilização de cidades centenárias, para dar lugar a novas cidades que poderiam estar em qualquer outra parte do mundo. Se o futuro for esse, será que ele vale a pena?
Você conta que realizou o filme numa época em que os dois não estavam com outros projetos. Pode contar um pouco sobre os seus novos trabalhos que tem em mente?
Depois de “Diários de Motocicleta” e “Na Estrada”, senti um forte desejo de voltar a desenvolver idéias originais, como em “Central do Brasil” ou ” Terra Estrangeira”. Esses roteiros estão ficando maduros, e espero escolher um deles para filmar ficção em 2016.