‘O Sal da Terra’ remexe em questões familiares de Sebastião Salgado
Num primeiro plano, “O Sal da Terra” é um documentário sobre o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado em áreas de conflito, miséria e locais inóspitos. Nos bastidores, revolve questões familiares: um pai que estava sempre em viagem, distante; um filho que mal tinha papo com o pai; e uma mãe de pulso firme que segurou as pontas da família.
O filme, que disputou o Oscar de melhor documentário, estreia nesta quinta (26) no Brasil.
“Se fosse com outro diretor, eu não faria. O cinema invade muito o seu tempo”, diz Sebastião Salgado ao Sem Legenda. Ele se refere ao filho, Juliano Ribeiro Salgado, que dirige “O Sal da Terra” ao lado do alemão Wim Wenders. “Wim trouxe muita coisa, mas a transcendência é do Juliano. É história dele esse filme.”
Juliano filmou o pai durante o projeto “Gênesis”, viajando com Salgado por locais quase intocados pela civilização. “Achava que seria uma coisa meio Klaus Kinski e Werner Herzog, mas tudo correu bem”, diz o filho, referindo-se aos famosos embates de ego entre o ator polonês morto em 1991 e o diretor alemão.
Wenders entrou no projeto quando as imagens de Juliano já haviam sido registradas. “Ele disse que queria fazer um filme sobre mim. Eu contei que não teria tempo e disse que o Juliano já estava atrás disso. Sugeri que fizessem algo juntos”, afirma Sebastião.
Se o filho registrou o pai em ação em meio aos índios zo’é no norte do Pará e à desolação gelada do Ártico, Wenders ficou com as entrevistas. Encarando fotos de projetos anteriores, dos mineiradores da Serra Pelada aos refugiados em Ruanda, Salgado comenta ao diretor alemão o contexto de cada um desses registros e se revela um ótimo contador de histórias.
“Foi quando vi os depoimentos filmados pelo Wim que me toquei do que Sebastião tinha vivido, do quanto tinha sofrido e aprendido”, diz Juliano, que sempre se refere ao pai pelo nome. “Aquilo mudou meu ponto de vista. A gente virou amigo.”
Nascido e criado em Paris, Juliano passou boa parte da infância afastado do pai, que estava sempre viajando para fotografar seus projetos. “O filme me fez resolver algumas questões: acho que o que eu sentia era rancor, raiva da ausência dele”.
O terceiro vértice familiar escancarado em “O Sal da Terra” é Lélia Salgado, mulher do fotógrafo e figura essencial em sua carreira: deu a ele a primeira câmera fotográfica, sustentou a família nos primeiros anos, enquanto Sebastião ainda não havia firmado o nome, virou uma espécie de agente do marido, negociando a venda de suas fotos com as agências e produzindo suas exposições e idealizou o Instituto Terra, reserva ecológica mantida pelo casal no interior de Minas Gerais.
A criação da reserva, aliás, fecha o “arco dramático” do filme, segundo Juliano. O documentário sustenta a tese de que Sebastião viu tanta miséria e tanta tragédia em seus trabalho que precisou adotar uma postura mais ativa, que não se restringisse a registrar as mazelas sociais.
A solução que ele encontrou foi criar essa reserva ecológica com milhares de árvores nas terras que pertenceram aos seus pais e que se encontravam áridas, sem vida.
“O Tião é testemunha de momentos importantes e não conseguiu resistir à carga negativa das atrocidades que viu. De testemunha vira ator”, comenta Juliano. “De certa forma, eu era o único que entendia essa dramaturgia.”
O que o pai achou do filme?
“O mais especial para mim foi ver a quantidade de coisas que eles conseguiram tirar. Não imaginei que aproveitariam tanto o que registraram. Só compreendi depois da montagem”, diz Salgado.
Pouco habituado, o fotógrafo estranhou a quantidade de parafernálias da equipe cinematográfica. “A base do cinema e da fotografia é a mesma, mas as atividades são muito distintas: para eles, há pouco espaço para o casual. Eles dominam o fenômeno, o objeto que querem captar; eu sigo esse fenômeno”, diz Sebastião.
“O Sal da Terra” é um filme que evita polêmicas como a que se deu em 2013, durante a abertura da exposição “Gênesis”, em Londres. Na época, organizações ambientalistas protestaram contra o apoio dado à mostra pela mineradora Vale, envolvida nas obras da usina hidrelétrica de Belo Monte.
“Eu não pedi que cortassem nada, nenhuma polêmica”, diz Sebastião. “A Vale é uma parceira nossa no projeto do Instituto Terra. Não vejo por que não pode também ser parceira no trabalho fotográfico.”
A “Ilustrada” publicou a crítica do filme na edição de quinta-feira (26). Daigo Oliva, editor-assistente da “Ilustrada” também escreveu sobre o filme no blog Entretempos.